terça-feira, 15 de maio de 2012

PONTIFÍCIO CONSELHO «COR UNUM» A FOME NO MUNDO UM DESAFIO PARA TODOS: O DESENVOLVIMENTO SOLIDÁRIO APRESENTAÇÃO


É com todo o gosto que procedo à apresentação do documento "A fome no mundo. Um desafio para todos: O desenvolvimento solidário". Trata-se de um texto cuidadosamente preparado pelo Pontifício Conselho "Cor Unum", por indicação do Santo Padre João Paulo II. Mais uma vez este ano, na sua Mensagem Quaresmal, o Sucessor de Pedro se fez porta-voz de todos aqueles que não dispõem de um mínimo vital: "A multidão de famintos, constituída por crianças, mulheres, idosos, imigrantes, prófugos e desempregados, eleva para nós o seu grito de dor. Eles imploram-nos, à espera de ser escutados".
Este documento situa-se no caminho indicado por Jesus Cristo aos seus discípulos. A pessoa e a mensagem de Jesus centram-se, efectivamente, na revelação de que "Deus é amor" (1 Jo 4, 8), um amor que redime o homem e o resgata da suas múltiplas misérias para restituir a sua plena dignidade. No decurso dos séculos a Igreja deu inumeráveis expressões concretas a esta solicitude de Deus. Poder-se-ia apresentar a história da Igreja também como uma história da sua caridade para com os mais pobres, tendo como protagonistas os cristãos que testemunharam aos seus irmãos necessitados o amor de Cristo que dá a vida pelo próximo.
Este estudo deseja contribuir para o empenho dos cristãos em partilhar as maiores dificuldades e carências dos homens de hoje. São de grande actualidade os temas aqui tratados: tanto na descrição da fome no mundo, como na apresentação das implicações éticas da questão, que dizem respeito a todos os homens de boa vontade.
A publicação assume especial importância na perspectiva do Grande Jubileu do ano 2000, que a Igreja se prepara para celebrar. O espírito do documento não se inspira em alguma ideologia, mas deixa-se guiar pela lógica evangélica, convidando ao seguimento de Jesus Cristo vivido no dia-a-dia.
Esperando que esta publicação possa contribuir para formar a consciência no exercício da justiça distributiva e da solidariedade humana, faço votos pela sua mais ampla difusão.

O desafio da fome

4. O planeta poderia oferecer a cada um a sua porção alimentar11.
Para enfrentar o desafio da fome, é neceessário em primeiro lugar considerar os seus numerosos aspectos e as suas verdadeiras causas. Ora, nem todas as realidades da fome e da subnutrição são conhecidas de maneira precisa. Entretanto, identificaram-se várias causas importantes. Começaremos por esclarecer melhor os motivos da nossa iniciativa, passando depois a tratar das principais causas deste flagelo.
Um escândalo que dura há demasiado tempo: a fome destrói a vida
5. Não se deve confundir fome com subnutrição. A fome ameaça não só a vida das pessoas, mas também a sua dignidade. Uma carência grave e prolongada de alimentação provoca o debilitamento do organismo, a apatia, a perda do sentido social, a indiferença e, por vezes, a hostilidade em relação aos mais frágeis: em particular as crianças e os idosos. Assim, grupos inteiros são condenados a morrer na desgraça. No decurso da história, esta tragédia repete-se infelizmente, mas a consciência contemporânea compreende melhor que outrora que a fome constitui um escândalo.
Até ao século XIX, as misérias que dizimavam populações inteiras tinham, com muita frequência, uma origem natural. Hoje elas são mais circunscritas mas, na maioria das vezes, derivam da acção humana. Basta citarmos algumas regiões ou países para nos convencermos disto: Etiópia, Camboja, ex-Jugoslávia, Ruanda, Haiti... Nesta época em que o homem, mais que outrora, tem a possibilidade de fazer face às misérias, tais situações constituem uma verdadeira desonra para a humanidade.
A subnutrição compromete o presente e o futuro duma população
6. Não obstante os grandes esforços desenvolvidos tenham produzido frutos, todavia há que admitir que a subnutrição é mais difundida que a fome e reveste formas muito diversificadas. Pode acontecer que uma pessoa seja subalimentada sem ter fome. Nesse caso, o organismo perde igualmente as suas potencialidades físicas, intelectuais e sociais12. A subnutrição pode ser qualitativa, em virtude de regimes alimentares desequilibrados (por excesso ou por deficiência). Ao mesmo tempo, ela é frequentemente quantitativa e torna-se incisiva em períodos de penúria. Por isso, algumas pessoas denominam-na «desnutrição» ou subalimentação13. A subnutrição revigora a difusão e as consequências de determinadas enfermidades infectivas e endémicas, fazendo aumentar as taxas de mortalidade, sobretudo entre as crianças com menos de cinco anos de idade.
As principais vítimas: as populações mais vulneráveis
7. Os pobres são as primeiras vítimas da subnutrição e da fome no mundo. Ser pobre significa quase sempre ser mais facilmente provado pelos inumeráveis perigos que ameaçam a sobrevivência e ter menor resistência às enfermidades físicas. Desde os anos 80, este fenómeno agrava-se e ameaça um número crescente de pessoas na maioria dos países. No seio duma população pobre, as primeiras vítimas são sempre os indivíduos mais frágeis: crianças, mulheres grávidas ou em período de amamentação, enfermos e pessoas idosas. Há que referir ainda outros grupos humanos a alto risco de deficiência nutritiva: as pessoas refugiadas ou deslocadas e as vítimas de vicissitudes políticas.
Todavia, o máximo da penúria alimentar encontra-se nos quarenta e dois países menos avançados (PMA), vinte e oito dos quais em África14. «Cerca de 780 milhões de habitantes de países em vias de desenvolvimento - ou seja, 20% da sua população - nem sempre dispõem dos meios para aceder diariamente à porção alimentar indispensável para o seu bem-estar nutritivo»15.
A fome gera fome
8. Nos países em vias de desenvolvimento, muitas vezes as populações que vivem duma agricultura de subsistência de muito fraco rendimento demasiado, passam fome no intervalo de duas colheitas. Se as colheitas anteriores já foram insuficientes, a penúria pode sobrevir e provocar uma fase incisiva de subnutrição: ela debilitará os organismos, pondo-os em perigo precisamente no momento em que serão necessárias todas as energias para preparar a próxima colheita. A carência compromete o futuro: comem-se as sementes, dilapidam-se os recursos naturais e aceleram-se a erosão, a degradação ou a desertificação dos solos.
Portanto, além da distinção entre fome (ou carestia) e subnutrição, há que mencionar a insegurança alimentar como um terceiro tipo de situação que provoca a fome ou a subnutrição, impedindo planificar e empreender trabalhos a longo prazo, para promover e obter um desenvolvimento duradouro16.
Causas detectáveis
9. Todavia, os factores climáticos e os cataclismas de todas as espécies, por mais importantes que sejam, estão longe de constituir as únicas causas da miséria e da subnutrição. Para compreender correctamente o problema da fome, é necessário considerar o conjunto das suas causas, conjecturais ou duradouras, bem como as suas implicações. Vejamos as causas principais, agrupando-as segundo as categorias habituais: económicas, sócio-culturais e políticas17.
A) CAUSAS ECONÓMICAS
Causas profundas
10. A fome deriva, antes de mais, da pobreza. A segurança alimentar das pessoas depende essencialmente do seu poder de compra, e não da disponibilidade física de alimentos18. A fome existe em todos os países: voltou a aparecer nos países europeus, tanto do Oeste como do Leste, e está muito difundida nos países pouco avançados ou subdesenvolvidos.
Contudo, a história do século XX ensina que a pobreza económica não é uma fatalidade. Verifica-se que muitos países progrediram economicamente e continuam a fazê-lo; outros, pelo contrário, sofrem uma regressão, vítimas de políticas - nacionais ou internacionais - assentes em falsas premissas.
A fome pode resultar ao mesmo tempo:
a) de políticas económicas inadequadas; as políticas injustas dos países desenvolvidos atingem, de maneira indirecta, mas profundamente todos os que carecem de recursos económicos, em todos os países;
b) de estruturas e costumes pouco eficazes e que contribuem mesmo para destruir a riqueza dos países:
  • a nível nacional, em países com desenvolvimento desequilibrado (19): os grandes organismos, públicos ou privados, em situação de monopólio (o que, por vezes, é inevitável) acabam em muitos casos por travar o desenvolvimento em vez de o incrementar, como têm demonstrado as reestruturações empreendidas em numerosos países nos últimos dez anos;
  • a nível nacional, nos países desenvolvidos: as suas deficiências notam-se menos a nível internacional, mas são de igual modo prejudiciais, directa ou indirectamente, para todos as pessoas desfavorecidas do mundo;
  • a nível internacional: as restrições ao comércio e os incentivos económicos, por vezes desordenados;
c) de comportamentos lamentáveis a nível moral: busca egoísta do dinheiro, do poder e da imagem pública; a perda do sentido de serviço à comunidade, em benefício exclusivo de pessoas ou de grupos; sem esquecer o importante grau de corrupção, sob as mais diversas formas, de que nenhum país se pode afirmar isento.
Tudo isto manifesta a contingência de toda a acção humana. Com efeito, apesar de todas as boas intenções, cometeram-se erros que provocaram situações de precariedade. Reconhecê-los ajuda a orientar-se para uma solução.
Na realidade, há que cultivar o desenvolvimento económico: tanto as instituições como as pessoas devem compartilhar as suas responsabilidades. A doutrina social da Igreja e o estudo das suas Encíclicas sociais pode iluminar eficazmente o papel que toca ao Estado.
A causa profunda da falta de desenvolvimento, ou de um desenvolvimento desequilibrado é de ordem ética. Prende-se com a vontade e a capacidade de servir gratuitamente os homens, através dos homens e para os homens, o que pressupõe o amor. Compreende todos os níveis, a complexa realidade das estruturas, legislações e comportamentos; manifesta-se na concepção e na realização de actos cujo alcance económico pode ser grande ou pequeno.
A recente evolução económica e financeira no mundo explica estes fenómenos complexos: a técnica e a moral interferem neles de forma muito particular e determinam os resultados das economias. Queremos falar aqui da crise da dívida na maioria dos países com desenvolvimento desequilibrado e das medidas de reajuste já adoptadas ou a adoptar.
A dívida dos países com desenvolvimento desequilibrado
11. O brusco aumento unilateral dos preços do petróleo, em 1973 e em 1979, atingiu de modo profundo os países não produtores, disponibilizou consideráveis quantias de dinheiro, que o sistema bancário procurou reciclar, e causou também uma crise económica geral, que afectou de modo particular os países pobres. Por múltiplas razões, durante os anos 70 e 80, a maioria dos países pôde contrair consideráveis empréstimos a juros variáveis. No que se refere aos países da América Latina e da África, foi assim possível desenvolver de modo espectacular o seu próprio sector público. Esse período de dinheiro fácil deu ocasião a múltiplos excessos: projectos inúteis, mal concebidos ou mal realizados, destruição brutal de economias tradicionais e aumento da corrupção em todos os países. Diversos países da Ásia evitaram estes erros, o que lhes permitiu um desenvolvimento muito rápido.
O aumento vertiginoso das taxas de juros (provocado pelo simples jogo do mercado, incontrolado e, provavelmente, incontrolável) colocou a maioria dos países da América Latina e da África em situação de interrupção dos pagamentos, o que provocou fenómenos de fuga de capital que logo se tornaram numa ameaça para o tecido social local - já de si frágil - e para a própria existência do sistema bancário. Verificou-se assim um amplo deterioramento da situação, a todos os níveis: económico, estrutural e moral. Como sempre, procuraram-se antes de mais soluções puramente técnicas e organizativas. Ora é evidente que tais medidas (que, se forem boas, há que adoptar) devem ser acompanhadas duma verdadeira reforma dos comportamentos da parte de todos e, de modo particular, das pessoas que, em cada um dos países e a todos os níveis, não conhecem a enorme pressão que exerce a pobreza sobre o seu nível de vida.
No início do período de reajuste, as transferências tornaram-se negativas: paralisação dos empréstimos, preço do petróleo artificialmente mantido a um nível intolerável para os países em vias de desenvolvimento; diminuição do preço das matérias-primas provocada pela desaceleração económica devida ao elevado preço do petróleo e, simultaneamente, à crise da dívida; reacção demasiado lenta da parte dos Organismos internacionais, com excepção do Fundo Monetário Internacional, na disponibilização de fundos; etc. Entretanto, o nível de vida nos países com dívidas demasiado elevadas começava a diminuir.
Pode-se observar aqui como é necessária a sabedoria, e não só os conhecimentos técnicos e económicos, para a administração do dinheiro. A disponibilização de consideráveis meios financeiros pode provocar notáveis prejuízos estruturais e pessoais em vez de favorecer só por si um salto de qualidade na situação dos mais desfavorecidos.
Esta é a conclusão a tirar: o desenvolvimento dos homens passa através da sua capacidade de altruísmo, isto é, da sua capacidade de amar, o que é da máxima importância, na prática. Numa palavra e em termos realistas: a caridade não é um luxo, é uma condição de sobrevivência para um elevadíssimo número de seres humanos.
Os programas de reajuste estrutural
12. A violência dos fenómenos monetários exigiu, em numerosos países, medidas muito enérgicas para atenuar as crises e restabelecer os grandes equilíbrios. Por sua natureza, essas medidas comportam fortes diminuições do poder de compra.
Estas crises económicas provocam consideráveis dificuldades e sofrimentos, mas a sua solução permite, em última análise, a reconstrução de um certo bem-estar.
A crise evidencia as debilidades do país, constituídas ou adquiridas, inclusivamente as que têm a própria origem nos erros de desenvolvimento, cometidos pelos governos sucessivos, pelos seus parceiros ou até mesmo pela comunidade internacional. Estas debilidades assumem múltiplas formas, que muitas vezes só «a posteriori» se manifestam; em certos casos têm origem no processo de independência, porque aquilo que constituía a força do poder colonial pode transformar-se na fragilidade do país independente, sem a manifestação de fenómenos compensatórios. Note-se, em geral, o peso dos grandes projectos, que constituem momentos fundamentais, em que se sente muito particularmente a necessidade de solidariedade. Na verdade, o primeiro efeito de tais políticas de desenvolvimento é a redução dos gastos gerais e, por conseguinte, dos rendimentos. As pessoas com poucos recursos enconómicos só têm uma alternativa: confiar nos dirigentes que se vão sucedendo ou procurar descartá-los. Eles próprios são frequentemente vítimas de grupos ambiciosos que buscam o poder através da ideologia ou da concupiscência, à margem de todos os processos democráticos, apoiando-se, se necessário, sobre forças externas.
Uma reforma económica requer, da parte dos dirigentes, uma grande capacidade de decisão política. Eis um critério da qualidade da sua acção: não apenas o bom êxito técnico do plano de estabilização, mas a capacidade de manter o apoio da maioria da população, inclusivamente dos mais desfavorecidos. Terão, por isso, que saber convencer as outras camadas da sociedade a assumir uma parte concreta do peso. Trata-se, neste caso, do pequeno grupo de pessoas com elevados rendimentos de nível internacional, mas também dos funcionários públicos, que antes gozavam duma situação bastante invejável no país e que podem vir a encontrar-se, de um dia para o outro, com os recursos fortemente reduzidos. É nestes casos que há-de entrar em jogo a solidariedade tradicional, dado que os pobres estão sempre prontos a socorrer o membro da família que volta à situação precária de que julgava ter já saído.
Só progressivamente é que, nestes reajustes, os responsáveis nacionais e internacionais foram tendo em conta a necessidade de proteger os mais pobres. Foram necessários vários anos para que o conceito de intervenções concomitantes, tendo em vista as populações mais expostas, assumisse uma certa importância. Por outro lado, tanto neste caso como nas situações de urgência, corre-se sempre o risco de intervir demasiado tarde e de forma brusca demais, com consequências que podem aumentar notavelmente os sofrimentos daqueles que se encontram na extremidade da corrente.
Em África e na América Latina (20) empreenderam-se vastos projectos, que incluíram:
  • programas de reajuste estrutural que comportaram severas medidas macroeconómicas;
  • a abertura de novos créditos importantes;
  • uma profunda reforma de estruturas para obviar às ineficiências locais: estas estão parcialmente ligadas aos monopólios de Estado, que absorvem uma parte importante do rendimento nacional sem assegurar, em contrapartida, em benefício de todos, um serviço de qualidade satisfactório. Em muitos desses países, foram afectados todos os serviços públicos e, como o joio frequentemente se mistura com o trigo, até mesmos sectores dinâmicos foram igualmente afectados (21).
Determinados governos, com frequência pouco reconhecidos a nível internacional, agiram de maneira admirável: tiveram a coragem política de tomar medidas inevitáveis e, simultaneamente, tendo em consideração os pareceres e pressões externas, esforçando-se por incrementar o nível de cooperação e de solidariedade no seu próprio país, e evitar incidentes. Há que reconhecer que a influência do exemplo do principal responsável depende não só da sua competência e dos seus dotes de dirigente, mas também da sua capacidade de limitar as injustiças sociais que subsistem sempre em situações destas.
Os países desenvolvidos devem colocar-se seriamente a questão de ver se a sua atitude, e até mesmo a sua preferência em relação aos países com desenvolvimento desequilibrado, se fundamentam na acção dos responsáveis políticos aos níveis social, técnico e político, ou se o seu apoio assenta noutros critérios.
B) CAUSAS SÓCIO-CULTURAIS
As realidades sociais
13. Constatou-se que alguns factores sócio-culturais aumentam os perigos da fome e da subnutrição crónica. Os tabus alimentares, a posição social e familiar da mulher, a carência de formação nas técnicas da nutrição, o analfabetismo generalizado, os partos precoces e, às vezes, demasiado próximos, e a precariedade do emprego ou do trabalho constituem outros factores que, juntos, podem dar origem à subnutrição e à miséria. Recordemos que os próprios países desenvolvidos não estão isentos deste flagelo: os mesmos factores provocam a subnutrição ocasional ou crónica a numerosos «novos pobres», lado a lado com pessoas que vivem na abundância e no consumismo.
A demografia
14. Há 10 mil anos, a terra contava provavelmente cinco milhões de habitantes. No século XVII, no alvorecer dos tempos modernos, ascendiam a quinhentos milhões. Desde então, o ritmo do crescimento demográfico aumentou: um bilião de habitantes no início do século XIX, 1,65 no princípio do século XX, 3 biliões em 1960, 4 em 1975, 5,2 em 1990, 5,5 em 1993 e 5,6 em 1994 (22). Durante algum tempo, a situação demográfica desenvolveu-se de maneira diversificada nos países «ricos» e nos países «em vias de desenvolvimento» (23). Esta constante está evoluindo. Recordemos que a proliferação é uma reacção da natureza - e, por conseguinte, do homem - às ameaças contra a sobrevivência da espécie.
Os trabalhos de investigação indicam que, à medida que enriquecem, os povos passam duma situação de elevada natalidade à situação inversa: baixo nível de natalidade e de mortalidade (24). O período de transição pode ser crítico sob o ponto de vista dos recursos alimentares: com efeito, a mortalidade diminui antes da natalidade. As transformações tecnológicas devem acompanhar o crescimento da população, caso contrário o ciclo regular da produção agrícola interrompe-se: as suas consequências são o enfraquecimento dos solos, a redução das terras de pousio e a falta de rotação das cultivações.
As suas implicações
15. O crescimento demográfico demasiado rápido constitui uma causa ou uma consequência do subdesenvolvimento? Excluindo os casos extremos, a densidade demográfica não justifica a fome. Observemos antes de mais o seguinte: por um lado, é nos deltas e vales superpovoados da Ásia que foram aplicadas as inovações agrícolas da chamada «revolução verde» e, por outro, países pouco povoados como o Zaire ou o Zâmbia, embora pudessem alimentar uma população vinte vezes mais numerosa, sem exigir ingentes trabalhos de irrigação, continuam a enfrentar dificuldades alimentares: os motivos são os desequilíbrios impostos pelos Estados, a política e a gestão económica, e não as causas objectivas ou a pobreza económica. Hoje em dia considera-se que existem maiores possibilidades de reduzir um excessivo crescimento demográfico, empenhando-se em diminuir a pobreza de massa, em vez de vencer a pobreza contentando-se em diminuir as taxas de aumento demográfico (25).
A situação demográfica evoluirá lentamente enquanto, nos países em vias de desenvolvimento, as famílias julgarem que a sua produção e a sua segurança só são salvaguardadas com um elevado número de filhos. Há que recordar que são geralmente as transformações económicas e sociais (26) que permitem aos pais aceitar o dom representado por um filho. Neste campo, a evolução depende em grande parte do nível sócio-cultural dos pais. Portanto, é preciso elaborar para os casais uma educação para a paternidade e a maternidade responsáveis, respeitando inteiramente os princípios éticos; sobretudo, é necessário dar-lhes acesso a métodos de controle da fecundidade, que estejam em harmonia com a verdadeira natureza do homem (27).
C) CAUSAS POLÍTICAS
A influência da política
16. A privação de alimentos foi utilizada no decurso da história, ontem como hoje, como arma política ou militar. Pode tratar-se de verdadeiros crimes contra a humanidade.
O século XX conheceu um elevado número de tais casos, como por exemplo:
a) a privação sistemática de alimentos aos camponeses ucranianos, por obra de Estaline, em 1930, cujo resultado foi de cerca de oito milhões de mortos. Este crime, por longo tempo desconhecido ou quase, foi recentemente confirmado, por ocasião da abertura dos arquivos do Kremlim;
b) os recentes assédios na Bósnia, em particular o de Sarajevo, quando se tomou como refém o próprio mecanismo de assistência humanitária;
c) os deslocamentos das populações na Etiópia, para alcançar o controle político por parte do partido único de governo. O balanço foi de centenas de milhares de mortos, em virtude da carestia provocada pela migrações forçadas e pelo abandono da agricultura;
d) a privação de alimentos aplicada como arma contra a secessão política nos anos 70, no Biafra.
A derrocada da União Soviética pôs parcialmente termo aos focos de guerras civis, provocadas pela sua acção directa ou pelas reacções à sua acção: revoluções sem êxito, deslocamentos de populações, desorganizações da agricultura, lutas tribais e genocídios. Contudo, numerosas situações subsistem, ou voltaram a impor-se, e podem provocar estes mesmos fenómenos. Ainda que não seja ao mesmo nível, eles não são menos prejudiciais para as populações: trata-se sobretudo do renascimento dos nacionalismos: estes são favorecidos por alguns Estados geridos por regimes ideológicos, mas também pelas repercussões locais das lutas de influência que os países desenvolvidos alimentam entre si, ou ainda a luta pelo poder em determinados países, particularmente em África.
Observemos inclusive as situações de embargo por razões políticas, como o de Cuba ou do Iraque. Trata-se de regimes considerados como ameaças para a segurança internacional que tomam, por assim dizer, as suas populações como refém. Com efeito, as primeiras vítimas deste género de actos de força são as próprias populações que deles são objecto. É por isso que há que tomar em consideração o preço, em termos humanitários, destas decisões. Por outro lado, alguns responsáveis especulam com as misérias do próprio povo, provocadas pelos seus comportamentos, para obrigar a Comunidade internacional a restabelecer os seus fornecimentos. Trata-se sempre duma situação específica que é preciso abordar caso por caso, no espírito da Declaração mundial sobre a nutrição, que declara: «A ajuda alimentar não pode ser rejeitada por motivos de obediência política, posição geográfica, sexo, idade ou pertença a um grupo étnico, tribal ou religioso» (28).
Estas são, enfim, as ulteriores repercussões da acção política sobre a fome. Diversas vezes, viram-se países desenvolvidos, produtores de suplementos agrícolas, exportar gratuitamente a própria produção excedente (trigo, por exemplo) - para países com desenvolvimento desequilibrado, onde a alimentação de base é o arroz. O objectivo era apoiar o desenvolvimento interno. Estas exportações gratuitas tiveram efeitos muito negativos: fizeram com que a população mudasse os próprios costumes alimentares, desencorajando os produtores locais que, pelo contrário, precisam de ser fortemente estimulados.
A concentração dos meios
17. No interior dos países com desenvolvimento desequilibrado, os desníveis económicos são superiores aos existentes nos países desenvolvidos ou ainda entre os próprios países. A riqueza e o poder encontram-se demasiado concentrados numa camada limitada mas complexa, ligada aos ambientes internacionais e controlando o aparelho do Estado, este mesmo extremamente deficiente. Verifica-se a interrupção de todo o desenvolvimento e, às vezes, até mesmo uma regressão económica e social. A diferença dos níveis de vida não gera apenas situações conflituais, que podem levar a violências em cadeia, mas favorece também o clientelismo como a única possibilidade de realização pessoal. O resultado é a paralização das iniciativas possíveis a nível puramente económico e, por outro lado, a profunda limitação das motivações altruístas que existem em todas as sociedades tradicionais. Em tais situações, o Estado desempenha com frequência um papel proponderante, que lhe permite favorecer os sectores exportadores da produção - o que, por si só, constitui um bem -, mas reserva pouco lucro ao conjunto das populações locais.
Noutros casos, por debilidade ou por ambição política, as autoridades estabelecem os preços dos produtos agrícolas a níveis tão baixos que os camponeses chegam a subvencionar os habitantes das cidades - situação esta que favorece o êxodo rural. Os mass media, a electrónica e a publicidade contribuem de igual modo para este despovoamento das áreas rurais. A ajuda ao desenvolvimento, em benefício desses países, é então como que um encorajamento mais ou menos indirecto aos governos que seguem estas estratégias perigosas, beneficiando assim desse apoio financeiro absolutamente ilegítimo. Essas políticas são decididamente contrárias ao verdadeiro interesse dos seus povos. Os países industrializados devem interrogar-se para saber se porventura não emitiram sinais negativos nesse sentido durante longos anos.
As desestruturações económicas e sociais
18. As desestruturações económicas e sociais resultam não só de políticas económicas inadequadas como também das consequências de pressões políticas nacionais e internacionais (cf. nn. 11-13 e 17). Recordemos algumas das mais frequentes e nocivas:
a) as políticas nacionais que abaixam artificialmente os preços agrícolas em prejuízo dos produtores locais de alimentos, sob a pressão das populações desfavorecidas das cidades, concebidas como uma potencial ameaça para a estabilidade política do país. Esta situação generalizou-se em África, no decurso dos anos 1975-1985, dando origem a uma forte diminuição das produções locais. Numerosos países com grandes potencialidades agrícolas, como o Zaire e o Zâmbia, tornaram-se pela primeira vez importadores líquidos;
b) a política da maioria dos países industrializados, que protegem enormemente a sua própria agricultura, favorecendo deste modo a produção de excedentes que se exportam a preços inferiores aos preços internos (dumping). Se não existisse este proteccionismo, os preços mundiais seriam mais elevados em benefício dos outros países produtores. Os privilegiados destas protecções encontram-se actualmente na Europa, em situações difíceis, depois de numerosos anos de encorajamento à produção, que provocaram fortes desestruturações do próprio sistema agrícola. Esta política, apoiada pela maioria das opiniões públicas locais, pode ser fundamentalmente contrária ao interesse geral dos consumidores mundiais, tanto dos privilegiados como dos mais desfavorecidos. Os países com protecção pagam o custo desta política; nos países sem esta protecção, os agricultores, elementos essenciais para o bem-estar do país, ficam penalizados pelas importações a preços reduzidos que prejudicam o preço dos produtos locais, acelerando a ruína da agricultura e o êxodo para as cidades.
c) as agriculturas tradicionais de subsistência são com frequência ameaçadas por um desenvolvimento económico erroneamente projectado. Citemos como exemplo a substituição das produções tradicionais por uma agricultura industrial orientada para a exportação (grandes quantidades de géneros alimentares destinados à exportação e tributários dos mercados agrícolas internacionais), ou então para produções de substituição local (por exemplo, a produção de cana de açúcar no Brasil, para obter álcool como combustível para automóveis, a fim de economizar nas importações de petróleo: acabou por produzir importantes migrações de camponeses desarraigados).
D) A TERRA PODE NUTRIR OS SEUS HABITANTES
Os notáveis progressos da humanidade
19. Apesar das enormes falhas consideradas até aqui, não devemos esquecer que é sob o efeito de progressos não menos espectaculares que a população dos países do mundo passou de 3 a 5,3 biliões de habitantes em trinta anos (1960-1990) (29). Nos países em vias de desenvolvimento, «a esperança de vida à nascença passou de quarenta e seis anos, em 1960, a sessenta e dois anos em 1987. A taxa de mortalidade de crianças com menos de cinco anos diminuiu cinquenta por cento, enquanto dois terços de bebés com menos de um ano são vacinados contra as principais doenças infantis... A porção de calorias por habitante aumentou cerca de 20% entre 1965 e 1985» (30).
De 1950 a 1980, a produção total de produtos alimentares no mundo duplicou e, «no mundo inteiro, existem alimentos suficientes para todos» (31). O facto de a miséria persistir a despeito disto demonstra a natureza estrutural da questão: «O principal problema concerne as condições de acesso a tais alimentos, as quais não são equitativas» (32). É injusto medir o consumo alimentar real das famílias somente com o parâmetro estatístico da disponibilidade de cereais por habitante. A fome não é uma questão de disponibilidade, mas de solvabilidade; trata-se dum problema de miséria.
Note-se, aliás, que a sobrevivência duma multidão de pessoas é assegurada por uma economia informal: esta é, por natureza, não declarada, dificilmente quantificável e precária.
Os mercados agro-alimentares
20. Os mercados agro-alimentares mundiais administram um determinado número de produtos, que nem sempre correspondem aos que são consumidos na maior parte dos países com desenvolvimento desequilibrado (33). As excessivas fluctuações de preços são contrárias aos interesses tanto dos produtores como dos consumidores. Elas são provocadas por mecanismos espontâneos de reajuste e amplificadas pelas características próprias de tais mercados. Todas as tentativas de estabilização têm sido pouco satisfatórias, ou até nocivas para os próprios produtores. Por outro lado, o próprio funcionamento dos mercados torna impossível um novo aumento dos preços. O reduzido número de empresas de comércio internacional não permite a alteração dos preços; pelo contrário, constitui um obstáculo insuperável para a chegada de novos empreendedores, o que é sempre negativo. O desenvolvimento das capacidades de produção depende muito mais da difusão dos progressos técnicos na produção (progresso genético e progresso de aplicação). Observemos que a produção média de arroz na Indonésia passou, no arco duma geração, de 4 a 15 toneladas/ha., o que supera grandemente o ritmo recorde de desenvolvimento da população. Na maioria dos países em que a agricultura progride, a produção cresce, e notavelmente, apesar da diminuição do número de agricultores.

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