É com todo o gosto que procedo à
apresentação do documento "A fome no mundo. Um desafio para todos: O
desenvolvimento solidário". Trata-se de um texto cuidadosamente preparado
pelo Pontifício Conselho "Cor Unum", por indicação do Santo Padre
João Paulo II. Mais uma vez este ano, na sua Mensagem Quaresmal, o Sucessor de
Pedro se fez porta-voz de todos aqueles que não dispõem de um mínimo vital:
"A multidão de famintos, constituída por crianças, mulheres, idosos,
imigrantes, prófugos e desempregados, eleva para nós o seu grito de dor. Eles
imploram-nos, à espera de ser escutados".
Este documento situa-se no caminho
indicado por Jesus Cristo aos seus discípulos. A pessoa e a mensagem de Jesus
centram-se, efectivamente, na revelação de que "Deus é amor" (1 Jo 4,
8), um amor que redime o homem e o resgata da suas múltiplas misérias para
restituir a sua plena dignidade. No decurso dos séculos a Igreja deu
inumeráveis expressões concretas a esta solicitude de Deus. Poder-se-ia
apresentar a história da Igreja também como uma história da sua caridade para
com os mais pobres, tendo como protagonistas os cristãos que testemunharam aos
seus irmãos necessitados o amor de Cristo que dá a vida pelo próximo.
Este estudo deseja contribuir para o
empenho dos cristãos em partilhar as maiores dificuldades e carências dos
homens de hoje. São de grande actualidade os temas aqui tratados: tanto na
descrição da fome no mundo, como na apresentação das implicações éticas da
questão, que dizem respeito a todos os homens de boa vontade.
A publicação assume especial
importância na perspectiva do Grande Jubileu do ano 2000, que a Igreja se
prepara para celebrar. O espírito do documento não se inspira em alguma
ideologia, mas deixa-se guiar pela lógica evangélica, convidando ao seguimento de
Jesus Cristo vivido no dia-a-dia.
Esperando
que esta publicação possa contribuir para formar a consciência no exercício da
justiça distributiva e da solidariedade humana, faço votos pela sua mais ampla
difusão.
O
desafio da fome
Para enfrentar o desafio da fome, é neceessário em primeiro lugar considerar os seus numerosos aspectos e as suas verdadeiras causas. Ora, nem todas as realidades da fome e da subnutrição são conhecidas de maneira precisa. Entretanto, identificaram-se várias causas importantes. Começaremos por esclarecer melhor os motivos da nossa iniciativa, passando depois a tratar das principais causas deste flagelo.
Um escândalo que dura há demasiado tempo: a fome destrói a vida
Até ao século XIX, as misérias que dizimavam populações inteiras tinham, com muita frequência, uma origem natural. Hoje elas são mais circunscritas mas, na maioria das vezes, derivam da acção humana. Basta citarmos algumas regiões ou países para nos convencermos disto: Etiópia, Camboja, ex-Jugoslávia, Ruanda, Haiti... Nesta época em que o homem, mais que outrora, tem a possibilidade de fazer face às misérias, tais situações constituem uma verdadeira desonra para a humanidade.
A subnutrição compromete o presente e o futuro duma população
6. Não obstante os grandes esforços desenvolvidos tenham produzido frutos, todavia há que admitir que a subnutrição é mais difundida que a fome e reveste formas muito diversificadas. Pode acontecer que uma pessoa seja subalimentada sem ter fome. Nesse caso, o organismo perde igualmente as suas potencialidades físicas, intelectuais e sociais12. A subnutrição pode ser qualitativa, em virtude de regimes alimentares desequilibrados (por excesso ou por deficiência). Ao mesmo tempo, ela é frequentemente quantitativa e torna-se incisiva em períodos de penúria. Por isso, algumas pessoas denominam-na «desnutrição» ou subalimentação13. A subnutrição revigora a difusão e as consequências de determinadas enfermidades infectivas e endémicas, fazendo aumentar as taxas de mortalidade, sobretudo entre as crianças com menos de cinco anos de idade.
As principais vítimas: as populações mais vulneráveis
7. Os pobres são as primeiras vítimas da subnutrição e da fome no mundo. Ser pobre significa quase sempre ser mais facilmente provado pelos inumeráveis perigos que ameaçam a sobrevivência e ter menor resistência às enfermidades físicas. Desde os anos 80, este fenómeno agrava-se e ameaça um número crescente de pessoas na maioria dos países. No seio duma população pobre, as primeiras vítimas são sempre os indivíduos mais frágeis: crianças, mulheres grávidas ou em período de amamentação, enfermos e pessoas idosas. Há que referir ainda outros grupos humanos a alto risco de deficiência nutritiva: as pessoas refugiadas ou deslocadas e as vítimas de vicissitudes políticas.
Todavia, o máximo da penúria alimentar encontra-se nos quarenta e dois países menos avançados (PMA), vinte e oito dos quais em África14. «Cerca de 780 milhões de habitantes de países em vias de desenvolvimento - ou seja, 20% da sua população - nem sempre dispõem dos meios para aceder diariamente à porção alimentar indispensável para o seu bem-estar nutritivo»15.
A fome gera fome
8. Nos países em vias de desenvolvimento, muitas vezes as populações que vivem duma agricultura de subsistência de muito fraco rendimento demasiado, passam fome no intervalo de duas colheitas. Se as colheitas anteriores já foram insuficientes, a penúria pode sobrevir e provocar uma fase incisiva de subnutrição: ela debilitará os organismos, pondo-os em perigo precisamente no momento em que serão necessárias todas as energias para preparar a próxima colheita. A carência compromete o futuro: comem-se as sementes, dilapidam-se os recursos naturais e aceleram-se a erosão, a degradação ou a desertificação dos solos.
Portanto, além da distinção entre fome (ou carestia) e subnutrição, há que mencionar a insegurança alimentar como um terceiro tipo de situação que provoca a fome ou a subnutrição, impedindo planificar e empreender trabalhos a longo prazo, para promover e obter um desenvolvimento duradouro16.
Causas detectáveis
9. Todavia, os factores climáticos e os cataclismas de todas as espécies, por mais importantes que sejam, estão longe de constituir as únicas causas da miséria e da subnutrição. Para compreender correctamente o problema da fome, é necessário considerar o conjunto das suas causas, conjecturais ou duradouras, bem como as suas implicações. Vejamos as causas principais, agrupando-as segundo as categorias habituais: económicas, sócio-culturais e políticas17.
A) CAUSAS ECONÓMICAS
Causas profundas
Contudo, a história do século XX ensina que a pobreza económica não é uma fatalidade. Verifica-se que muitos países progrediram economicamente e continuam a fazê-lo; outros, pelo contrário, sofrem uma regressão, vítimas de políticas - nacionais ou internacionais - assentes em falsas premissas.
A fome pode resultar ao mesmo tempo:
a) de políticas económicas inadequadas; as políticas injustas dos países desenvolvidos atingem, de maneira indirecta, mas profundamente todos os que carecem de recursos económicos, em todos os países;
b) de estruturas e costumes pouco eficazes e que contribuem mesmo para destruir a riqueza dos países:
- a nível nacional, em países com desenvolvimento desequilibrado
(19): os grandes organismos, públicos ou privados, em situação de
monopólio (o que, por vezes, é inevitável) acabam em muitos casos por
travar o desenvolvimento em vez de o incrementar, como têm demonstrado as
reestruturações empreendidas em numerosos países nos últimos dez anos;
- a nível nacional, nos países desenvolvidos: as suas deficiências
notam-se menos a nível internacional, mas são de igual modo prejudiciais,
directa ou indirectamente, para todos as pessoas desfavorecidas do mundo;
- a nível internacional: as restrições ao comércio e os incentivos
económicos, por vezes desordenados;
Tudo isto manifesta a contingência de toda a acção humana. Com efeito, apesar de todas as boas intenções, cometeram-se erros que provocaram situações de precariedade. Reconhecê-los ajuda a orientar-se para uma solução.
Na realidade, há que cultivar o desenvolvimento económico: tanto as instituições como as pessoas devem compartilhar as suas responsabilidades. A doutrina social da Igreja e o estudo das suas Encíclicas sociais pode iluminar eficazmente o papel que toca ao Estado.
A causa profunda da falta de desenvolvimento, ou de um desenvolvimento desequilibrado é de ordem ética. Prende-se com a vontade e a capacidade de servir gratuitamente os homens, através dos homens e para os homens, o que pressupõe o amor. Compreende todos os níveis, a complexa realidade das estruturas, legislações e comportamentos; manifesta-se na concepção e na realização de actos cujo alcance económico pode ser grande ou pequeno.
A recente evolução económica e financeira no mundo explica estes fenómenos complexos: a técnica e a moral interferem neles de forma muito particular e determinam os resultados das economias. Queremos falar aqui da crise da dívida na maioria dos países com desenvolvimento desequilibrado e das medidas de reajuste já adoptadas ou a adoptar.
A dívida dos países com desenvolvimento desequilibrado
11. O brusco aumento unilateral dos preços do petróleo, em 1973 e em 1979, atingiu de modo profundo os países não produtores, disponibilizou consideráveis quantias de dinheiro, que o sistema bancário procurou reciclar, e causou também uma crise económica geral, que afectou de modo particular os países pobres. Por múltiplas razões, durante os anos 70 e
O aumento vertiginoso das taxas de juros (provocado pelo simples jogo do mercado, incontrolado e, provavelmente, incontrolável) colocou a maioria dos países da América Latina e da África em situação de interrupção dos pagamentos, o que provocou fenómenos de fuga de capital que logo se tornaram numa ameaça para o tecido social local - já de si frágil - e para a própria existência do sistema bancário. Verificou-se assim um amplo deterioramento da situação, a todos os níveis: económico, estrutural e moral. Como sempre, procuraram-se antes de mais soluções puramente técnicas e organizativas. Ora é evidente que tais medidas (que, se forem boas, há que adoptar) devem ser acompanhadas duma verdadeira reforma dos comportamentos da parte de todos e, de modo particular, das pessoas que, em cada um dos países e a todos os níveis, não conhecem a enorme pressão que exerce a pobreza sobre o seu nível de vida.
No início do período de reajuste, as transferências tornaram-se negativas: paralisação dos empréstimos, preço do petróleo artificialmente mantido a um nível intolerável para os países em vias de desenvolvimento; diminuição do preço das matérias-primas provocada pela desaceleração económica devida ao elevado preço do petróleo e, simultaneamente, à crise da dívida; reacção demasiado lenta da parte dos Organismos internacionais, com excepção do Fundo Monetário Internacional, na disponibilização de fundos; etc. Entretanto, o nível de vida nos países com dívidas demasiado elevadas começava a diminuir.
Pode-se observar aqui como é necessária a sabedoria, e não só os conhecimentos técnicos e económicos, para a administração do dinheiro. A disponibilização de consideráveis meios financeiros pode provocar notáveis prejuízos estruturais e pessoais em vez de favorecer só por si um salto de qualidade na situação dos mais desfavorecidos.
Esta é a conclusão a tirar: o desenvolvimento dos homens passa através da sua capacidade de altruísmo, isto é, da sua capacidade de amar, o que é da máxima importância, na prática. Numa palavra e em termos realistas: a caridade não é um luxo, é uma condição de sobrevivência para um elevadíssimo número de seres humanos.
Os programas de reajuste estrutural
Estas crises económicas provocam consideráveis dificuldades e sofrimentos, mas a sua solução permite, em última análise, a reconstrução de um certo bem-estar.
A crise evidencia as debilidades do país, constituídas ou adquiridas, inclusivamente as que têm a própria origem nos erros de desenvolvimento, cometidos pelos governos sucessivos, pelos seus parceiros ou até mesmo pela comunidade internacional. Estas debilidades assumem múltiplas formas, que muitas vezes só «a posteriori» se manifestam; em certos casos têm origem no processo de independência, porque aquilo que constituía a força do poder colonial pode transformar-se na fragilidade do país independente, sem a manifestação de fenómenos compensatórios. Note-se, em geral, o peso dos grandes projectos, que constituem momentos fundamentais, em que se sente muito particularmente a necessidade de solidariedade. Na verdade, o primeiro efeito de tais políticas de desenvolvimento é a redução dos gastos gerais e, por conseguinte, dos rendimentos. As pessoas com poucos recursos enconómicos só têm uma alternativa: confiar nos dirigentes que se vão sucedendo ou procurar descartá-los. Eles próprios são frequentemente vítimas de grupos ambiciosos que buscam o poder através da ideologia ou da concupiscência, à margem de todos os processos democráticos, apoiando-se, se necessário, sobre forças externas.
Uma reforma económica requer, da parte dos dirigentes, uma grande capacidade de decisão política. Eis um critério da qualidade da sua acção: não apenas o bom êxito técnico do plano de estabilização, mas a capacidade de manter o apoio da maioria da população, inclusivamente dos mais desfavorecidos. Terão, por isso, que saber convencer as outras camadas da sociedade a assumir uma parte concreta do peso. Trata-se, neste caso, do pequeno grupo de pessoas com elevados rendimentos de nível internacional, mas também dos funcionários públicos, que antes gozavam duma situação bastante invejável no país e que podem vir a encontrar-se, de um dia para o outro, com os recursos fortemente reduzidos. É nestes casos que há-de entrar em jogo a solidariedade tradicional, dado que os pobres estão sempre prontos a socorrer o membro da família que volta à situação precária de que julgava ter já saído.
Só progressivamente é que, nestes reajustes, os responsáveis nacionais e internacionais foram tendo em conta a necessidade de proteger os mais pobres. Foram necessários vários anos para que o conceito de intervenções concomitantes, tendo em vista as populações mais expostas, assumisse uma certa importância. Por outro lado, tanto neste caso como nas situações de urgência, corre-se sempre o risco de intervir demasiado tarde e de forma brusca demais, com consequências que podem aumentar notavelmente os sofrimentos daqueles que se encontram na extremidade da corrente.
Em África e na América Latina (20) empreenderam-se vastos projectos, que incluíram:
- programas de reajuste estrutural que comportaram severas medidas
macroeconómicas;
- a abertura de novos créditos importantes;
- uma profunda reforma de estruturas para obviar às ineficiências
locais: estas estão parcialmente ligadas aos monopólios de Estado, que
absorvem uma parte importante do rendimento nacional sem assegurar, em
contrapartida, em benefício de todos, um serviço de qualidade
satisfactório. Em muitos desses países, foram afectados todos os serviços
públicos e, como o joio frequentemente se mistura com o trigo, até mesmos
sectores dinâmicos foram igualmente afectados (21).
Os países desenvolvidos devem colocar-se seriamente a questão de ver se a sua atitude, e até mesmo a sua preferência em relação aos países com desenvolvimento desequilibrado, se fundamentam na acção dos responsáveis políticos aos níveis social, técnico e político, ou se o seu apoio assenta noutros critérios.
B) CAUSAS SÓCIO-CULTURAIS
As realidades sociais
13. Constatou-se que alguns factores sócio-culturais aumentam os perigos da fome e da subnutrição crónica. Os tabus alimentares, a posição social e familiar da mulher, a carência de formação nas técnicas da nutrição, o analfabetismo generalizado, os partos precoces e, às vezes, demasiado próximos, e a precariedade do emprego ou do trabalho constituem outros factores que, juntos, podem dar origem à subnutrição e à miséria. Recordemos que os próprios países desenvolvidos não estão isentos deste flagelo: os mesmos factores provocam a subnutrição ocasional ou crónica a numerosos «novos pobres», lado a lado com pessoas que vivem na abundância e no consumismo.
A demografia
14. Há 10 mil anos, a terra contava provavelmente cinco milhões de habitantes. No século XVII, no alvorecer dos tempos modernos, ascendiam a quinhentos milhões. Desde então, o ritmo do crescimento demográfico aumentou: um bilião de habitantes no início do século XIX, 1,65 no princípio do século XX, 3 biliões em 1960, 4 em 1975, 5,2 em 1990, 5,5 em 1993 e 5,6 em 1994 (22). Durante algum tempo, a situação demográfica desenvolveu-se de maneira diversificada nos países «ricos» e nos países «em vias de desenvolvimento» (23). Esta constante está evoluindo. Recordemos que a proliferação é uma reacção da natureza - e, por conseguinte, do homem - às ameaças contra a sobrevivência da espécie.
Os trabalhos de investigação indicam que, à medida que enriquecem, os povos passam duma situação de elevada natalidade à situação inversa: baixo nível de natalidade e de mortalidade (24). O período de transição pode ser crítico sob o ponto de vista dos recursos alimentares: com efeito, a mortalidade diminui antes da natalidade. As transformações tecnológicas devem acompanhar o crescimento da população, caso contrário o ciclo regular da produção agrícola interrompe-se: as suas consequências são o enfraquecimento dos solos, a redução das terras de pousio e a falta de rotação das cultivações.
As suas implicações
15. O crescimento demográfico demasiado rápido constitui uma causa ou uma consequência do subdesenvolvimento? Excluindo os casos extremos, a densidade demográfica não justifica a fome. Observemos antes de mais o seguinte: por um lado, é nos deltas e vales superpovoados da Ásia que foram aplicadas as inovações agrícolas da chamada «revolução verde» e, por outro, países pouco povoados como o Zaire ou o Zâmbia, embora pudessem alimentar uma população vinte vezes mais numerosa, sem exigir ingentes trabalhos de irrigação, continuam a enfrentar dificuldades alimentares: os motivos são os desequilíbrios impostos pelos Estados, a política e a gestão económica, e não as causas objectivas ou a pobreza económica. Hoje em dia considera-se que existem maiores possibilidades de reduzir um excessivo crescimento demográfico, empenhando-se em diminuir a pobreza de massa, em vez de vencer a pobreza contentando-se em diminuir as taxas de aumento demográfico (25).
A situação demográfica evoluirá lentamente enquanto, nos países em vias de desenvolvimento, as famílias julgarem que a sua produção e a sua segurança só são salvaguardadas com um elevado número de filhos. Há que recordar que são geralmente as transformações económicas e sociais (26) que permitem aos pais aceitar o dom representado por um filho. Neste campo, a evolução depende em grande parte do nível sócio-cultural dos pais. Portanto, é preciso elaborar para os casais uma educação para a paternidade e a maternidade responsáveis, respeitando inteiramente os princípios éticos; sobretudo, é necessário dar-lhes acesso a métodos de controle da fecundidade, que estejam em harmonia com a verdadeira natureza do homem (27).
C) CAUSAS POLÍTICAS
A influência da política
O século XX conheceu um elevado número de tais casos, como por exemplo:
a) a privação sistemática de alimentos aos camponeses ucranianos, por obra de Estaline, em 1930, cujo resultado foi de cerca de oito milhões de mortos. Este crime, por longo tempo desconhecido ou quase, foi recentemente confirmado, por ocasião da abertura dos arquivos do Kremlim;
b) os recentes assédios na Bósnia, em particular o de Sarajevo, quando se tomou como refém o próprio mecanismo de assistência humanitária;
c) os deslocamentos das populações na Etiópia, para alcançar o controle político por parte do partido único de governo. O balanço foi de centenas de milhares de mortos, em virtude da carestia provocada pela migrações forçadas e pelo abandono da agricultura;
d) a privação de alimentos aplicada como arma contra a secessão política nos anos 70, no Biafra.
A derrocada da União Soviética pôs parcialmente termo aos focos de guerras civis, provocadas pela sua acção directa ou pelas reacções à sua acção: revoluções sem êxito, deslocamentos de populações, desorganizações da agricultura, lutas tribais e genocídios. Contudo, numerosas situações subsistem, ou voltaram a impor-se, e podem provocar estes mesmos fenómenos. Ainda que não seja ao mesmo nível, eles não são menos prejudiciais para as populações: trata-se sobretudo do renascimento dos nacionalismos: estes são favorecidos por alguns Estados geridos por regimes ideológicos, mas também pelas repercussões locais das lutas de influência que os países desenvolvidos alimentam entre si, ou ainda a luta pelo poder em determinados países, particularmente em África.
Observemos inclusive as situações de embargo por razões políticas, como o de Cuba ou do Iraque. Trata-se de regimes considerados como ameaças para a segurança internacional que tomam, por assim dizer, as suas populações como refém. Com efeito, as primeiras vítimas deste género de actos de força são as próprias populações que deles são objecto. É por isso que há que tomar em consideração o preço, em termos humanitários, destas decisões. Por outro lado, alguns responsáveis especulam com as misérias do próprio povo, provocadas pelos seus comportamentos, para obrigar a Comunidade internacional a restabelecer os seus fornecimentos. Trata-se sempre duma situação específica que é preciso abordar caso por caso, no espírito da Declaração mundial sobre a nutrição, que declara: «A ajuda alimentar não pode ser rejeitada por motivos de obediência política, posição geográfica, sexo, idade ou pertença a um grupo étnico, tribal ou religioso» (28).
Estas são, enfim, as ulteriores repercussões da acção política sobre a fome. Diversas vezes, viram-se países desenvolvidos, produtores de suplementos agrícolas, exportar gratuitamente a própria produção excedente (trigo, por exemplo) - para países com desenvolvimento desequilibrado, onde a alimentação de base é o arroz. O objectivo era apoiar o desenvolvimento interno. Estas exportações gratuitas tiveram efeitos muito negativos: fizeram com que a população mudasse os próprios costumes alimentares, desencorajando os produtores locais que, pelo contrário, precisam de ser fortemente estimulados.
A concentração dos meios
17. No interior dos países com desenvolvimento desequilibrado, os desníveis económicos são superiores aos existentes nos países desenvolvidos ou ainda entre os próprios países. A riqueza e o poder encontram-se demasiado concentrados numa camada limitada mas complexa, ligada aos ambientes internacionais e controlando o aparelho do Estado, este mesmo extremamente deficiente. Verifica-se a interrupção de todo o desenvolvimento e, às vezes, até mesmo uma regressão económica e social. A diferença dos níveis de vida não gera apenas situações conflituais, que podem levar a violências em cadeia, mas favorece também o clientelismo como a única possibilidade de realização pessoal. O resultado é a paralização das iniciativas possíveis a nível puramente económico e, por outro lado, a profunda limitação das motivações altruístas que existem em todas as sociedades tradicionais. Em tais situações, o Estado desempenha com frequência um papel proponderante, que lhe permite favorecer os sectores exportadores da produção - o que, por si só, constitui um bem -, mas reserva pouco lucro ao conjunto das populações locais.
Noutros casos, por debilidade ou por ambição política, as autoridades estabelecem os preços dos produtos agrícolas a níveis tão baixos que os camponeses chegam a subvencionar os habitantes das cidades - situação esta que favorece o êxodo rural. Os mass media, a electrónica e a publicidade contribuem de igual modo para este despovoamento das áreas rurais. A ajuda ao desenvolvimento, em benefício desses países, é então como que um encorajamento mais ou menos indirecto aos governos que seguem estas estratégias perigosas, beneficiando assim desse apoio financeiro absolutamente ilegítimo. Essas políticas são decididamente contrárias ao verdadeiro interesse dos seus povos. Os países industrializados devem interrogar-se para saber se porventura não emitiram sinais negativos nesse sentido durante longos anos.
As desestruturações económicas e sociais
18. As desestruturações económicas e sociais resultam não só de políticas económicas inadequadas como também das consequências de pressões políticas nacionais e internacionais (cf. nn. 11-13 e 17). Recordemos algumas das mais frequentes e nocivas:
a) as políticas nacionais que abaixam artificialmente os preços agrícolas em prejuízo dos produtores locais de alimentos, sob a pressão das populações desfavorecidas das cidades, concebidas como uma potencial ameaça para a estabilidade política do país. Esta situação generalizou-se em África, no decurso dos anos 1975-1985, dando origem a uma forte diminuição das produções locais. Numerosos países com grandes potencialidades agrícolas, como o Zaire e o Zâmbia, tornaram-se pela primeira vez importadores líquidos;
b) a política da maioria dos países industrializados, que protegem enormemente a sua própria agricultura, favorecendo deste modo a produção de excedentes que se exportam a preços inferiores aos preços internos (dumping). Se não existisse este proteccionismo, os preços mundiais seriam mais elevados em benefício dos outros países produtores. Os privilegiados destas protecções encontram-se actualmente na Europa, em situações difíceis, depois de numerosos anos de encorajamento à produção, que provocaram fortes desestruturações do próprio sistema agrícola. Esta política, apoiada pela maioria das opiniões públicas locais, pode ser fundamentalmente contrária ao interesse geral dos consumidores mundiais, tanto dos privilegiados como dos mais desfavorecidos. Os países com protecção pagam o custo desta política; nos países sem esta protecção, os agricultores, elementos essenciais para o bem-estar do país, ficam penalizados pelas importações a preços reduzidos que prejudicam o preço dos produtos locais, acelerando a ruína da agricultura e o êxodo para as cidades.
c) as agriculturas tradicionais de subsistência são com frequência ameaçadas por um desenvolvimento económico erroneamente projectado. Citemos como exemplo a substituição das produções tradicionais por uma agricultura industrial orientada para a exportação (grandes quantidades de géneros alimentares destinados à exportação e tributários dos mercados agrícolas internacionais), ou então para produções de substituição local (por exemplo, a produção de cana de açúcar no Brasil, para obter álcool como combustível para automóveis, a fim de economizar nas importações de petróleo: acabou por produzir importantes migrações de camponeses desarraigados).
D) A TERRA PODE NUTRIR OS SEUS HABITANTES
Os notáveis progressos da humanidade
19. Apesar das enormes falhas consideradas até aqui, não devemos esquecer que é sob o efeito de progressos não menos espectaculares que a população dos países do mundo passou de
De
Note-se, aliás, que a sobrevivência duma multidão de pessoas é assegurada por uma economia informal: esta é, por natureza, não declarada, dificilmente quantificável e precária.
Os mercados agro-alimentares
20. Os
mercados agro-alimentares mundiais administram um determinado número de
produtos, que nem sempre correspondem aos que são consumidos na maior parte dos
países com desenvolvimento desequilibrado (33). As excessivas fluctuações de
preços são contrárias aos interesses tanto dos produtores como dos
consumidores. Elas são provocadas por mecanismos espontâneos de reajuste e amplificadas
pelas características próprias de tais mercados. Todas as tentativas de
estabilização têm sido pouco satisfatórias, ou até nocivas para os próprios
produtores. Por outro lado, o próprio funcionamento dos mercados torna
impossível um novo aumento dos preços. O reduzido número de empresas de
comércio internacional não permite a alteração dos preços; pelo contrário,
constitui um obstáculo insuperável para a chegada de novos empreendedores, o
que é sempre negativo. O desenvolvimento das capacidades de produção depende
muito mais da difusão dos progressos técnicos na produção (progresso genético e
progresso de aplicação). Observemos que a produção média de arroz na Indonésia
passou, no arco duma geração, de 4
a 15 toneladas/ha., o que supera grandemente o ritmo
recorde de desenvolvimento da população. Na maioria dos países em que a
agricultura progride, a produção cresce, e notavelmente, apesar da diminuição
do número de agricultores.
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